há umas duas semanas atrás comecei a sentir uma imperiosa vontade de trabalhar numa peça sobre aborto. cheguei a fazer um trabalho de ilustração meio nouveau a alguns anos, mas nada perto desse trabalho que comecei a desenvolver no início dessa semana e que resolvi chamar Nossa Senhora dos Anjos Idos.

escrever esse post foi muito difícil, uma vez que me vieram a cabeça uma série de questionamentos que levaram a outros que levaram a outros... quem me conhece sabe que minha postura em relação ao aborto é irredutível: sou super pro life, e me entristece saber que esse termo hoje em dia ficou associado a pessoas retrógradas e conservadoras. mas pela minha forma de ver a vida - espiritualista convicta - não poderia jamais ser de outra maneira, já que o espiritualismo te faz ver a vida de forma multidimensional, sem as limitações do materialismo. mas essa é minha visão, e não desejo de maneira nenhuma empurrar isso prás pessoas como sendo a única verdade que existe. enquanto não houver um consenso entre a comunidade científica a respeito de onde começa a vida, fica muito difícil saber a verdade dos fatos. mesmo sendo muito sensível a essa questão, que me causa um misto de revolta, compaixão e tristeza, tentei resistir a tentação de fazer um trabalho panfletário, o que seria muito chato, e depois de alguma reflexão concluí o quanto é difícil trabalhar com um assunto tão delicado e tão cheio de contradições. resolvi então usar mais o meu emocional do que a razão e me abster de dar opiniões. minha idéia foi então converter o trabalho numa espécie de prece visual, não apenas pelos espíritos interrompidos em seu processo reincarnatório como pelas mães que por uma ou outra razão se vêem obrigadas a interromper esse processo, que por suas profundas implicações a nível espiritual não são passíveis de ocorrer sem alguma forma de dor.

como quase sempre acontece, o trabalho toma suas próprias rédeas e eu apenas me deixo conduzir. a princípio imaginei uma espécie de entidade elevada, uma santa mesmo, que cuidaria dos pequenos espíritos e das mães em sofrimento. algo como a compaixão personificada. não deu certo. o rosto que apareceu não foi lá muito suave, mas antes até mesmo um pouco severo. ela se cobre de forma displicente com uma espécie de manto escuro, por onde o coração dourado transparece. achei importante o coração... porque o melhor juiz para esse tipo de questão só pode ser o amor, né? outra coisa que me veio e que achei bastante interessante foram os cabelos... que vieram como enormes raízes de uma velha árvore, ou como tentáculos, ou ainda como serpentes... descendo sobre duas figuras femininas mascaradas que estão como a pedir abrigo sob as vestes da santa, ou deusa.

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existe um mito que é visto como o polo oposto da Grande Mãe doadora, que é o da Mãe Terrível. esse mito representa o domínio dos instintos e dos poderes do inconsciente que não se encontram controlados pelo ego. a Mãe Terrível não nutre nem protege; ela é a negadora do feminino em seu polo positivo, castrando, reprimindo e até mesmo matando seus filhos. ela é representada em diferentes culturas como deusas negras e destrutivas, como a deusa hindu Kali, a balinesa Ranga, ou ainda como górgonas. as madrastas e bruxas dos contos de fadas também são relacionadas a esse aspecto da Deusa. todas essas deusas são identficadas com répteis, aranhas ou cobras (engraçado como minha figura inicialmente me lembrou mesmo a Medusa...) enfim, acabei encontrando nela uma grande identificação com esse mito e ainda estou em dúvida se ela deveria ser mesmo uma deusa consoladora ou refletir inteiramente o aspecto negativo do feminino. (notem que no mundo dos mitos e na natureza não existe essa conotação maniqueísta de negativo = mau e positivo = bom. e que minha tentativa de questionamento aqui no post não pretende ser de maneira nenhuma acusatória, como se a Mãe Terrível fosse a malvadona e a Mãe Criadora a boazinha-doadora. as duas são aspectos da Grande Mãe e contém em si aspectos da psique que estão presentes em todas as mulheres.)

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intrigante essa relação do aborto com o mito da Mãe Terrível. acredito que a reflexão sobre esse arquétipo possibilite trazer à luz um pouco da psique das mulheres que por um ou outro motivo se neguem a desenvolver a faceta criadora do feminino (vejam bem que essa posição não envolve o aborto terapêutico, mas o aborto que ocorre por livre vontade da própria mãe, por motivos os mais diversos). respeito muito a posição das mulheres que não desejam ter filhos, que não sentem a menor conexão com a maternidade (embora não acho que isso justifique o aborto), mas acho perigosa a visão de muitas feministas que acham que fazer aborto é sinal de liberação e controle sobre o próprio corpo e sobre seu comportamento sexual. acho bem revelador esse trecho de um dos meus livros de cabeceira, "Jung e o Tarô - Uma Jornada Arquetípica", da Sallie Nicholls, quando ela fala da Imperatriz, arcano que é o arquétipo da completude feminina:
O aspecto devorador da deusa torna-se aparente toda a vez que a mulher negligencia o seu verdadeiro reino, que é o relacionamento, e se torna faminta de poder; nesse momento ela vira realmente a devoradora do homem. Sua força, que já não é a força sutil do amor, transforma-se no amor estridente do poder. (...) Fascinadas pelo poder, muitas mulheres deram a impressão de haverem perdido o contato com a muita feminina criatividade que pretendiam demonstrar. Nas profundezas do seu ser, a maioria das mulheres, dentro e fora desse movimento, procura realmente uma igualdade pacífica e um relacionamento criativo com os homens, mais do que a predominância e o poder sobre eles. Entretanto, (...) o nosso é um tempo de terrível violência, em sua grande parte totalmente irracional. Na confusão geral, o grito sanguinolento da feminista devoradora de homens é ouvido em todo lugar. Dir-se-à que a Imperatriz, a quem foi negado por tempo demasiado longo o reino que por direito lhe pertence, se ergue das profundezas com a fúria infernal da mulher escarnecida. (...) É compreensível que, na busca por sua verdadeira essência, a mulher apareça sob muitos aspectos."
para quem não conhece o tarot, a Imperatriz é o arcano que representa a mulher completa, emancipada e plena, consciente de sua criatividade e "governante pelo amor". a que tem todas as deusas equilibradas dentro de si. minha esperança é a de ver um dia a mulher chegando a essa condição de plenitude... embora saiba que não dependa inteiramente dela, pois há todo um sistema que favorece o afloramento da "Mãe Terrível", impedindo que a Mulher-Imperatriz assuma o controle de seu papel criativo.

2 falas:

post interessantíssimo e lindo. lindíssima também a pintura, fico bestificada com o seu traço. você imagina o quadro prontinho antes de começar a desenhar ou ele vai se alterando e ganhando novos elementos à medida que se desenvolve?

5:07 PM  

muito massa a tua reflexão e também tua pintura. continue! vou levá-la pra uma aula de filosofia. posso, né? obrigado!

1:43 PM  

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